BREVEMENTE...
Todos os homens a bordo têm múltiplas funções. Emanuel Canada, não só pesca, como é também o maquinista do atuneiro. Entre todas as suas responsabilidades, cabe-lhe zelar para que os porões se mantenham à temperatura ideal para a conservação do peixe, evitando que este perca frescura e valor.
Na rota das grandes manchas
Pesca sustentável nos Açores
Num ano infeliz (2016) para os atuneiros que operam no arquipélago dos Açores, tivemos acesso ao quotidiano da traineira mais bem sucedida. Documentámos ali a relação ancestral entre as velhas artes de pesca e um animal extraordinário.
Passaram quase dois meses desde a largada da traineira Mestre Soares de Vila do Porto, em Santa Maria. Foram dois meses de teste à paciência dos 11 pescadores a bordo, concentrados como sardinhas em lata nesta traineira de 16,2 metros. O navio é exíguo – um sussurro à proa ouve-se na popa. Mas o pior é a espera.
Este é um jogo de persistência e cansaço. De noite, o mestre Romão Rosário faz cálculos mentais de tudo o que já se gastou e de como as despesas superam largamente os rendimentos. Se a contabilidade da operação fosse uma balança, o prato das despesas pesaria como pedras. Durante sessenta dias, a rotina da traineira que escolhemos para documentar a safra de pesca de 2016 foi sempre a mesma: os valores de captura eram tão baixos que o rendimento mensal por pescador não ultrapassou 40 euros. Em contrapartida, o combustível e os mantimentos são consumidos com ou sem proveitos de pesca.
Um atuneiro como o Mestre Soares consome em média 50 litros por hora – 40 litros advêm do esforço de propulsão e 10 litros são consumidos pelo gerador que alimenta a energia eléctrica da embarcação, incluindo a água que circula nos tanques do isco vivo. Em média, o Mestre Soares varre diariamente os mares dos Açores durante cerca de doze horas à procura de vestígios dos grandes cardumes. No fim de cada dia, queimou 600 litros de gasóleo que, embora subsidiado e comprado a um preço consideravelmente mais baixo, não ajudam as contas do armador, caso a viagem não resulte numa captura bem sucedida.
Por fim, a experiência de Romão falou mais alto. Perto da ilha Graciosa, a agitação das aves marinhas prenuncia o grande achado. Na ponte alta, é finalmente avistado o cardume. Romão navega na sua direcção em marcha lenta, permitindo que o peixe se reúna em torno da embarcação e faça desta o seu novo abrigo. A partir desse momento, a embarcação e o cardume coabitam numa espécie de simbiose temporária: o peixe abriga-se e alimenta-se por baixo da embarcação e esta, por seu lado, mantém um ritmo de pesca consistente, enchendo regularmente os porões.
Há um conhecimento antigo nesta relação, feita de regras, procedimentos e sustos. Como dois dançarinos de tango, o navio e a mancha rodopiam até o cardume se render temporariamente ao atuneiro. Ou, nas palavras mais exactas do mestre Romão, “a mancha tem de ser trabalhada” – um processo que durará até ao último dia em que o atuneiro permanecer sob a mancha.
Não há apenas o risco iminente de dispersão do cardume, obrigando a que a embarcação se afaste atempadamente de espécies ameaçadoras, como há sempre a possibilidade de avistar novos cardumes e fazer com estes se juntem ao cardume que já mora à sombra da embarcação. É um jogo de tensão que vou documentando, inserido numa velha narrativa reescrita desde que há pescadores. Em faina nada se comenta, nem se discutem os riscos: as tarefas são metodicamente desempenhadas, com palavras de ordem rápidas.
Mesmo cercadas pelo mar em todas as direcções, as tripulações partilham um código de conduta. Um atuneiro pode permanecer na mesma mancha por um período superior a dois meses e, para que tal aconteça, o atuneiro que encontra o cardume terá de comunicar as coordenadas do achado a uma segunda embarcação com a qual dividirá a faina durante todo esse tempo, garantindo que pelo menos uma das embarcações tenha sempre a mancha sob controlo, enquanto a outra se dirige a terra para descarregar o peixe. Tudo é volátil e pode esfumar-se em segundos.
Embora o cardume se mantenha fiel à embarcação, esta só pode pescar até preencher a capacidade dos porões. Num dia normal, e de acordo com o perfil de peixe capturado, a pesca tem início às seis da manhã, antes ainda de o Sol raiar, e passadas duas horas, no máximo, está finalizado o primeiro período de pesca do dia. É isso que acontece agora. Com dois compartimentos do porão quase cheios, a tripulação mantém o ritmo até que nada mais caiba no porão. Aí traçará rumo a Ponta Delgada e navegará durante mais de 16 horas para descarregar o peixe na lota.
No intervalo entre cada acto de captura, instala-se uma tensão palpável a bordo. Os momentos frenéticos de pesca acabam depressa e o verdadeiro desespero
assalta a traineira quando uma tripulação inteira tem de aguardar mais de dez horas até voltar a pescar novamente. É então que o espaço confinado e os tempos mortos ateiam o desgaste já adiantado e testam os nervos da tripulação. Se dependesse da vontade destes homens, eles pescariam durante todo o dia, obtendo as capturas desejadas num período de tempo mais curto, regressando rapidamente para as suas famílias. No entanto, há muito que estes homens aprenderam que só durante esses dois períodos do dia – a alvorada e o crepúsculo – o peixe tem fome e entra em frenesi alimentar, possibilitando a sua captura. Poderíamos pensar que é a tecnologia humana que adapta o oceano, mas este é um exemplo palpável de como é o mar e as suas criaturas que forçam o homem a modificar-se.
Disposta em linha ao longo da lateral bombordo da embarcação, a tripulação pesca a um ritmo inacreditável e eu procuro não me conter nos disparos enquanto essa luta arde. Vou-me recolhendo aqui e ali para desobstruir o espaço que já é curto e entrelaço-me nos cabos existentes para garantir que não caio ao mar, enquanto me deixo envolver no quadro. Num período de pesca que tanto pode durar 30 minutos como duas horas, a tripulação captura mais de cinco toneladas. O chicharro e a sardinha são as espécies utilizadas como isco e servem para aliciar o cardume enquanto os homens estão em faina. Os pescadores atiçam o atum com negaças que envolvem o anzol ou com amostras que simulam a forma de uma sardinha. O “ruído” provocado pelo chuveiro constante que é jorrado pela lateral da embarcação deixa o peixe numa profunda agitação, tornando mais fácil a sua captura. Uma das posições mais activas é a do pescador que fica numa posição mais próxima da popa da embarcação. O bonito segue a sua marcha numa posição dianteira em relação à embarcação enquanto o atum-patudo, mais vivo e fogaz, ataca as amostras pela popa, agitando os “saltos” e obrigando a que o pescador que tranca o peixe seja auxiliado pelo homem a seu lado que, com recurso a um “puxeiro”, ajudará a trazer o peixe para o interior da embarcação.
Durante quatro dias, o processo repete-se até que os porões estejam cheios ou até que se esgote o isco vivo nas tinas da embarcação. São 4 dias em que 11 homens dividem o espaço útil de uma embarcação com pouco mais de 16 metros e onde a inexistência de um dessalinizador obriga a um consumo rigoroso da água existente a bordo. Por norma, durante esses dias de pesca, cada tripulante tem apenas direito a um banho. Concluída a faina, é altura da segunda embarcação fazer uma aproximação lenta à mancha para render a embarcação atestada. No momento em que esta estiver já por cima do cardume, a traineira Mestre Soares navega para terra, para descarregar o peixe, e sai fugazmente numa direcção perpendicular em relação à embarcação que ficará na mancha. Só assim o peixe a abandona e passa alimentar-se da embarcação que entrou agora, como uma bailarina saltando dos braços de um parceiro para o outro. Quando a substituição se completa, os nervos dos pescadores finalmente acalmam. Mas a dança continua lá em baixo.
O bonito (ou gaiado) e o atum-patudo são as duas espécies mais capturadas no arquipélago dos Açores. O mercado regional, no qual se integram três grandes empresas de atum de conserva, mantém viva a frota de atuneiros dos Açores. Todos os anos, entre Março e Setembro, uma frota de pequenos e grandes atuneiros procura avistar sinais dos cardumes que passam pelo arquipélago durante a sua rota migratória. À medida que as águas aquecem, o atum aproxima-se dos Açores, proporcionando uma oportunidade imperdível.Esta é, contudo, uma rota migratória que ainda não é totalmente compreendida. O Instituto do Mar, em parceria com o Instituto Oceanográfico Woods Hole e a Universidade de Ciência e Tecnologia do Rei Abdul, têm vindo a desenvolver estudos importantes sobre estas duas espécies. Em Maio de 2014, começaram a ser implementados marcadores de satélite em alguns exemplares de atum-patudo com o objectivo de compreender melhor as suas rotas migratórias, a sua distribuição e conectividade no Atlântico. Estes trabalhos combinam as últimas inovações em matéria de sensores e transmissores de satélite com o conhecimento empírico acumulado ao longo de
gerações nas embarcações tradicionais de pesca.
Por vezes, alguns objectos flutuantes, os “achados” como lhes chamam os pescadores, funcionam como pontos de agregação no meio do vasto oceano, aglomerando em seu redor cardumes de proporções inimagináveis. As manchas podem fazer a diferença
entre uma campanha lucrativa e um ano de prejuízo.
A rota incompreendida destes cardumes obriga a um conhecimento profundo por parte dos mestres das embarcações e a grande persistência durante o período de busca. Até avistar uma mancha, o mestre da embarcação e o vigia destacado para essa função podem levar meses de procura, durante os quais os valores de captura são praticamente nulos.
Durante a década de 1950, muitos pescadores do arquipélago da Madeira foram forçados a emigrar para Angola em busca de uma vida melhor. A fartura dos mares de África cativou muitos desses emigrantes que, hoje, a bordo das traineiras açorianas, ainda trabalham. Aliás, a longa tradição de pesca de atum no arquipélago da Madeira aprumou a arte partilhada nos mares dos Açores: o “Salto e Vara”. Conhecidos pelas suas eficazes companhas, os madeirenses são frequentemente chamados pelos armadores açorianos para liderarem as safras de pesca das suas traineiras.
Depois de cada descarga de peixe em Ponta Delgada e antes de rumar novamente para a mancha, Romão varre a costa de São Miguel em busca de isco vivo. Com o auxilio de uma embarcação mais pequena, uma parte da tripulação navega junto da orla costeira procurando cardumes de sardinha ou chicharro para cercar com a rede. Quatro tripulantes a bordo da lancha e três mergulhadores cercam o peixe, arrastando-o depois lentamente até à traineira para que este possa ser cuidadosamente retirado e guardado nas tinas com a ajuda de um “peneiro”. “Iscar” é uma manobra determinante, difícil e que requer experiência por parte de toda a tripulação. A eficácia da captura do atum enquanto a traineira estiver sobre a mancha depende da qualidade do isco.
Os manuais de reportagem recomendam ao jornalista que seleccione uma instância representativa da totalidade da realidade que ele tenta analisar. Paradoxalmente, a viagem aqui documentada revelou-se uma das mais importantes da safra de 2016. Depois de mais de um mês e meio de permanência na mesma mancha, a embarcação Mestre Soares foi rendida pelo Baía da Maia para poder navegar até à ilha de São Miguel e descarregar o atum capturado na lota. Já em terra firme, a tripulação do Mestre Soares recebeu o aviso indesejado: o Baía da Maia tinha perdido a mancha durante a madrugada devido ao ataque de espécies a que os pescadores chamam de “peixe ruim”. Grupos de golfinhos, estimulados pelo isco vivo que a embarcação atira para o mar, utilizam o seu porte para mover os atuns do local privilegiado. Afastado da cadeia, o atum afunda para profundidades mais amplas ou dispersa-se, desfazendo a mancha.
Para o atuneiro Mestre Soares, a notícia de que a mancha dispersara determinou o fim desta safra. A tripulação registou um total de capturas de 98 toneladas – um número gratificante que coloca esta pequena embarcação no topo da lista de capturas da região, num ano que registou valores extremamente baixos e deixou os pescadores a fazer contas à vida.
Num ano normal, cada tripulação chega a capturar cerca de quinhentas toneladas. A temporada de pesca de atum nos Açores está agora a terminar e não será certamente recordada como uma das mais lucrativas da história. Nos últimos anos, muitos pescadores e armadores aproveitaram fundos comunitários e as facilidades do Governo Regional para trocarem os seus barcos de boca aberta por traineiras maiores e mais adaptadas à arte do “Salto e Vara”. Embora as novas embarcações tenham mais autonomia e capacidade de pesca, têm também custos de manutenção superiores que dificultam a sua rentabilidade.
As feridas abertas pelos anzóis que saltam das linhas em tensão, ou pelas barbatanas dos peixes que estrangulam entre o braço e as costelas, saram mais cedo ou mais tarde. A pele, arcaicamente tatuada, vai sentindo as fendas a aprofundarem, enquanto os homens se rendem à falta de espaço na cabine e se estendem como lagartos debaixo do sol abrasivo do mar alto. São marcas no corpo que a mente inquieta destes homens tende a desvalorizar. Numa região onde, por toda a costa, famílias inteiras subsistem da pesca, os indicadores que vão chegando da natureza são razão suficiente para lhes roubar o sono. Afinal havia fundos, mas nem tudo a fundo perdido. "Com ou sem mancha as contas lá estão no banco por pagar e as bocas à mesa para comer."
Reportagem publicada na revista
National Geographic Portugal,
em Outubro de 2016.