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O CULTIVO DE UM MILAGRE
 

Enquanto o homem vai ganhando terreno e do- minando todas as outras espécies, o planeta é bru- talmente empurrado para um abismo industrial. Da desflorestação ao consumo excessivo de água, a pecuária é apontada como um dos sectores que mais contribui para o aumento do aquecimento global e continua a desafiar as leis do equilíbrio. Em 2050, o planeta deverá ter mais trezentos mi- lhões de bovinos do que em 2017.

O Inverno ainda dura na ilha do Príncipe Eduardo. O vento empurra o mar que vai morrendo nas praias.

AS PRAIAS MARCAM A FRONTEIRA ENTRE O AZUL PROFUNDO do Atlântico Noroeste e as verdejantes pastagens desta ilha canadiana. Ao longe, uma manada de vacas varre a costa da ilha, salpicando o verde homogéneo das pastagens. Nem o desconforto do salitre que se entranha no pêlo afasta o gado do mar. ¶ Durante anos a fio, estas deslumbrantes praias foram o cenário onde o gado de Joe Dorgan pastou em liberdade. Dorgan dedicou a vida à pecuária, focando-se sobretudo na criação de gado leiteiro. ¶ Observador, com uma curiosidade insaciável, este peculiar agricultor legou ao mundo a oportunidade de reduzirmos o excesso de calor retido na atmosfera, causado pela emissão antropogénica de gases com efeito de estufa.

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A cada volta que o planeta dá sobre si próprio, mais 250 mil Homo sapiens vêem pela primeira vez a luz do dia. Em contrapartida, nessas mesmas 24 horas, apenas 145 mil se despedem para sempre da sua passagem pelo planeta azul. A sedentarização dos povos consolidada na revolução agrícola do Neolítico e o desenvolvimento tecnológico desencadeado pela Revolução Industrial no final do século XVIII produziram um crescimento demográfico sem precedentes.

Cerca de trezentos e cinquenta mil anos decorreram pacientemente até a população da nossa espécie superar pela primeira vez a fasquia de mil milhões de indivíduos. Contudo, depois de 1850, foram precisos menos de duzentos anos para que a população mundial crescesse de um para sete mil milhões. Igualmente exponencial foi o aumento da pressão exercida sobre os recursos que o planeta oferece e que perpetuam a nossa existência. Somos mais, muitos mais, e todos os dias a trave-mestra que sustenta o equilíbrio entre

demografia e recursos é dobrada à sua máxima curvatura. É preciso mais trigo, mais peixe, mais carne, mais terra para lavrar tem de ser encontrada.

A pressão que exercemos sobre o planeta desdobra-se numa imensidade de causas e consequências que conduzem a um clima cada vez mais inquieto. O aquecimento global é hoje um dos maiores desafios que o homem enfrenta e a pecuária uma das principais fontes de emissão de gases com efeito de estufa para a atmosfera.

Durante o processo de digestão, os ruminantes produzem metano como subproduto da fermentação microbiana anaeróbica dos alimentos no rúmen e, em menor grau, no intestino grosso. Ao contrário do que o senso comum sugere, apenas 10% destas emissões acontecem através do flato. Os restantes 90% de metano são libertados pela boca do animal. Embora a emissão antropogénica de dióxido de carbono seja evidentemente superior em todo o planeta, a eficácia do metano na retenção de calor na atmosfera pode ser 28 vezes superior à do dióxido de carbono.

Para transmitir a ideia do que isso representa e de qual o tamanho da pegada ecológica da pecuária relativamente ao aquecimento global, é habitual nas conferências apresentar-se o exemplo do Brasil, que dispõe hoje do maior stock de gado vivo do mundo. Segundo a Agência para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, um bovino leiteiro, no Brasil, liberta em média 72 quilogramas de metano por ano, enquanto um bovino para produção de carne liberta cerca de 56 quilogramas. Em 2017, a proporção de cabeças de gado leiteiro e de gado de carne no Brasil era de 17 milhões para 197 milhões, respectivamente. Todas essas cabeças de gado são responsáveis, num único ano, pelo total catastrófico de 12 milhões de toneladas de metano libertadas para a atmosfera. Pior: o investimento no sector agrícola colocou o Brasil no topo da produção mundial de gado bovino e, em pouco mais de 50 anos, o stock nacional aumentou em mais de 158 milhões de cabeças de gado.

Entra em cena a experiência de Dorgan na costa canadiana.

EM 2014, UMA ALGA VERMELHA despertou a curiosidade da comunidade científica pelo seu potencial para produzir uma redução significativa dos níveis de metano libertados pelos ruminantes de todo o mundo. Tudo começou na exploração de Joe Dorgan que, como os seus antepassados, gostava de levar o gado a vaguear pelas praias da sua região.

A pastorícia costeira não é um devaneio contemporâneo nem uma experiência new age. Alguns documentos sobre a agricultura da Grécia Antiga e o célebre “Livro das Sagas” da Islândia mostram que os pastores levavam frequentemente o gado a vaguear pelas praias. Mas o que lhes dizia afinal o conhecimento empírico produzido por centenas de anos de pecuária?

Voltemos então à ilha do Príncipe Eduardo e à exploração de Joe Dorgan. A família deste criador canadiano constatou ao longo dos anos que as vacas que passavam mais tempo na costa, alimentando-se das algas trazidas pelas tempestades, eram consideravelmente mais saudáveis, tinham melhor taxa de crescimento, reproduziam-se mais rapidamente e produziam mais leite, comparativamente às manadas mantidas longe da costa. As evidências pareciam claras por muito que não existisse uma explicação lógica para o fenómeno.

Quando se reformou, em 2011, o velho curioso decidiu aprofundar o conhecimento sobre os benefícios das macroalgas para a saúde animal e desenvolveu um novo negócio centrado na distribuição de ração orgânica para gado, aproveitando a circunstância de, naquela ilha, milhares de toneladas de algas serem trazidas anualmente para a costa por força das tempestades.

Para acrescentar valor ao seu produto e conseguir a confiança do mercado, Dorgan recorreu ao investigador e ambientalista Robert Kinley da Universidade Dalhousie na Nova Escócia, que submeteu o gado a testes para provar os benefícios que Dorgan já conhecia. Na sua perpétua ambição de contribuir para um planeta melhor e mais sustentável, Kinley levantou uma questão que nunca passara pela cabeça de Dorgan: que efeito terão as algas nos níveis de metano libertados pela fermentação entérica destes ruminantes?

“Eu suspeito de tudo”, conta Kinley, numa entrevista feita por videoconferência. “Essa informação não era necessária para que ele pudesse colocar o produto no mercado, mas como podia testá-lo, testei. Monitorizei as emissões de metano e identifiquei reduções de cerca de 20% nos animais alimentados com a mistura de algas que Dorgan produzia.”

A surpreendente descoberta levantava agora muitas outras questões. Será o efeito antimetanogénico comum a todas as espécies de algas? Haverá espécies mais eficazes na inibição de metano? Que substância natural está presente nas algas que lhes confere estas propriedades antimetanogénicas?

Quando Kinley foi chamado para trabalhar na Organização de Investigação da Commonwealth Scientific para a Pesquisa Industrial, em parceria com a Meet & Livestock Australia e com a Universidade James Cook, na Austrália, a descoberta que fizera no Canadá e o artigo científico que publicou em 2013, onde foi provado pela primeira vez o efeito antimetanogénico de algas, despertaram grande interesse sobre o assunto e um novo estudo foi desenvolvido por uma equipa multidisciplinar da universidade australiana. Entre verdes, castanhas e vermelhas, vinte espécies de algas tropicais foram trazidas a laboratório com o intuito de testar o efeito de cada uma na inibição da produção de metano durante o processo de digestão.

Os resultados foram ainda mais categóricos. Entre as espécies ensaiadas, uma alga vermelha mostrou claramente ser a mais poderosa solução para o problema de emissão de metano: a Asparagopsis taxiformis, nos ensaios in vitro, surpreendeu toda a equipa com taxas de inibição de metano de 98,9%. Ao contrário dos resultados obtidos com outras espécies, que se mostravam bastante ineficazes quando aplicadas em doses baixas, a Asparagopsis mantinha a eficácia quando aplicada em doses inferiores a 2% (matéria seca) da ração total fornecida por animal, ao fim de 72 horas de incubação.

Imagine uma baía ampla, protegida por um colar de ilhas que amparam a energia inquieta das ondas que nas- cem no mar alto. No mar espelhado, abriga-se um sistema de cordas flutuantes que dança tranquilamente a cerca de oito milhas da costa vietnamita. À superfície, descobrem-se apenas os flutuadores que sustêm as cordas submersas. A meia água, para dar corpo à dança, existe uma exuberante floresta de biomassa vermelha a que o mar se vai encostando.

Em terra, um grupo de mulheres arremata em polvorosa a secagem das algas já colhidas, en- quanto as outras preparam mais umas dezenas de metros de cordas que serão o substrato do próximo ciclo do cultivo de Asparagopsis. O cultivo desta espécie tem potencial para constituir um modo de vida alternativo para comunidades costeiras da Ásia. Esse foi durante muito tempo o idílico sonho que comandou os avanços da investigação que acaba de deixar em mar aberto uma semente que poderá revolucionar toda uma indústria.

A publicação do artigo científico de Lorenna Machado, em Janeiro de 2014, disseminou a importante descoberta da equipa de investigação da Universidade James Cook e colocou a Asparagopsis taxiformis na boca do mundo. Seria possível cultivar esta espécie em larga escala? Kinley foi rápido a alertar que a Asparagopsis taxiformis não é abundante nem disponível no mercado. Para ser uma solução válida para a redução das emissões de metano, teria de ser cultivada industrialmente. Kinley acrescentou ainda que não existe qualquer conhecimento sobre o cultivo em larga escala de Asparagopsis taxiformis.

Profundamente enraizada na cultura asiática, a utilização de macroalgas marinhas na rotina alimentar exige que a sua produção seja cada vez maior, mais eficaz e diversificada. Entre 2005 e 2015 a produção mundial de macroalgas aumentou de 13,5 milhões para 29,4 milhões de tonela-as anuais. Mas se o cultivo de algas marinhas em larga escala é uma realidade consolidada, a espécie em foco é mais desafiante e é aqui que Portugal tem um papel preponderante.

Os únicos artigos científicos sobre a produção de Asparagopsis são da autoria de um investigador português. Durante o seu doutoramento, entre 2004 e 2008, Leonardo Mata desenvolveu um sistema experimental de cultivo de macroalgas em tanques, integrado com uma piscicultura, e debruçou-se sobre o estudo das condições óptimas para o cultivo de biomassa de Asparagopsis e seus produtos naturais com valor comercial (como o bromofórmio).

O sucesso da investigação e dos elevados níveis de produção de Asparagopsis levaram Leonardo à Universidade James Cook, bem longe de sua casa. Um equipa de investigação desta universidade estava então a dar os primeiros passos para o desenvolvimento de sistemas de cultivo de macroalgas em tanques e Leonardo Mata teve um papel fundamental para estabelecer os sistemas que mais tarde serviram de base à investigação que colocou a espécie na boca do mundo O mundo assistia ao início de mais uma importante corrida científico-comercial e Leonardo Mata acumulava mais de dez anos de investigação com a Asparagopsis.

Requisitado por várias pessoas e empresas, in- teressadas em dominar o cultivo desta espécie, Leonardo Mata estabeleceu uma parceria com o director-geral da empresa Australis Aquaculture, 

sediada nos Estados Unidos. Ambos formaram a empresa Greener Grazing com financiamento fi- lantrópico e da própria empresa Australis.

A Australis dispõe de um sistema de aquicultura de peixes no Vietname, onde se pretende estabelecer o cultivo de Asparagopsis taxiformis a grande escala. A estratégia é agora bem diferente da usada durante o doutoramento do investigador. Leonardo sabe que, para conseguir uma produção a grande escala, capaz de for- necer volumes de biomassa a baixo custo para um mercado com apetite voraz, será necessário produzir Asparagopsis taxiformis no mar onde há menos limitações de área de cultivo e menos requisitos energéticos e de manutenção do que os sistemas de produção em terra.

Curiosamente, o ciclo de vida desta espécie compreende duas fases que apresentam morfologias distintas que lhes conferem características específicas para o cultivo: os estádios de esporófito diplóide, que pode crescer flutuando livremente na coluna de água (cultivo em tanques) e de gametófito haplóide, que depende da existência de um substrato no qual a alga se desenvolverá (cultivo em mar).

O cultivo de gametófitos de Asparagopsis taxiformis não se consegue fazer através de clonagem vegetativa de propágulos, como acontece na produção de Kappaphyccus, a alga vermelha mais produzida no mundo. Por isso, o projeto Greener Grazing vai adoptar métodos utilizados pela indústria de aquicultura de outra alga vermelha, a Phorphyra, muito conhecida pela sua utilização em sushi.

A cultura intensiva de Asparagopsis taxiformis em mar aberto exige no entanto o desenvolvimento de uma “maternidade” em terra onde se possa manter o estado diplóide em cultivo e se induza a produção de esporos que vão ser “semeados” em cordas antes da sua transferência para o oceano.

Culturas de esporófitos saudáveis, em crescimento e com diversidade de genótipos, são o verdadeiro desafio e a base do sucesso da aquicultura de Asparagopsis taxiformis. É nesta área que a equipa científica liderada por Leonardo Mata tem feito os avanços mais inovadores.

Ao abrigo do projeto Greener Grazing, Mata chefia a missão científica de uma equipa multi-disciplinar espalhada pelo mundo. Os laboratórios do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve são a grande incubadora de várias estirpes de Asparagopsis taxiformis de Portugal e de outros lugares do mundo, cultivadas em ambiente laboratorial controlado. Simulta- neamente, nos laboratórios da empresa Australis em Khánh Hòa, no Vietname, cultivos com várias estirpes locais são mantidos com intuito de optimizar as taxas de crescimento da alga e conseguir uma produção significativa de esporos que serão depois depositados no sistema de cordas que, por sua vez, será montado no mar e onde a alga se desenvolverá até ser colhida, seca e embalada para poder finalmente cumprir o seu propósito: integrar a ração diária do gado bovino, reduzindo a emissão de metano destes ruminantes.

Este trabalhoso passo que disponibilizará finalmente Asparagopsis taxiformis sob a forma de matéria liofilizada para abastecimento das grandes produções de gado em todo o mundo pode agora estar perto da concretização. Sediado no Vietname há mais de cinco meses, trabalhando para gerar biomassa e conseguir os esporos da alga nos laboratórios de Khánh Hòa, Leonardo Mata respira de satisfação e conta que agora é tudo uma questão de tempo.

As cordas onde se desenvolveram os esporos pelos quais Mata tanto lutou em laboratório estão finalmente em mar aberto e sob constante observação. Aquele que é provavelmente o primeiro sistema de aquicultura em mar aberto de Asparagopsis taxiformis tem o cunho da investigação científica portuguesa e poderá trazer ao planeta mais alento nos próximos meses.

No pressuposto de sucesso da produção de Asparagopsis taxiformis em larga escala, manter-se-ão algumas dúvidas: conseguirá a indústria produzir e distribuir eficazmente a alga para que ela obtenha os efeitos esperados no combate à emissão de gases com efeito de estufa para a atmosfera? Será a redução da emissão de metano razão suficiente para motivar as grandes empresas de produção de gado a incluir o novo produto na ração dos seus animais, adicionando um custo à sua produção? Ou poderá a inclusão desse pro- duto ser imposta pelas entidades governamentais como medida de combate ao aquecimento global?

Uma vez mais, a experiência, paixão e empenho de Robert Kinley poderão ser o óleo para o bom funcionamento desta máquina acabada de nascer. Os resultados publicados em Fevereiro deste ano, num artigo científico liderado por Kinley, vieram confirmar a eficácia da propriedade antimetanogénica (redução de até 98%) da Asparagopsis taxiformis com taxas de inclusão de alga dez vezes menores do que no estudo an- terior (0,20% na mistura total da ração).

Igualmente surpreendente é o ganho médio diário de peso dos bois de 40% nos últimos 60 dias da experiência com uma adição de apenas 0,10% de alga na ração. Durante o processo de digestão destes ruminantes, a produção de metano resulta como subproduto da fermentação anaeróbica da matéria orgânica ingerida.

O estudo de Kinley não só mostra que a alga actua como agente de inibição da produção de metano (CH4), evitando a ligação das moléculas de carbono (C) às de hidrogénio (H), como prova ainda que essas moléculas uma vez disponíveis contribuem amplamente para eficiência energética destes animais, trazendo-lhes benefícios à saúde e crescimento. Kinley foi ainda mais longe e recolheu amostras das carcaças dos animais alimentados com o novo aditivo orgânico, provando que o sabor, textura e suculência da carne dos animais são totalmente preservados.

Se as razões ambientais não forem suficientes para persuadir os produtores de gado, os resultados obtidos por Robert Kinley neste recente ensaio mostram que a introdução de percentagens muito baixas do novo aditivo orgânico na ração do animal pode tornar as explorações de gado mais lucrativas, assegurando a qualidade do seu produto. Esta poderá ser a catapulta para a introdução da alga no mercado e o início de uma era mais sustentável em toda a indústria pecuária. No futuro, talvez o metano produzido pelo gado seja só uma reminescência do passado.

 

 

 

 

 

 

Reportagem publicada na revista

National Geographic Portugal,

em Julho de 2020.

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